sábado, 7 de outubro de 2017

Notas sobre "Um teto todo seu" de Virginia Woolf


Um ensaio ficcional repleto da mais fina ironia de uma das mais importantes escritoras do mundo. Virginia Woolf foi contista, ensaísta, romancista, editora e crítica literária, escrevia com excepcional maestria. Nascida em Londres em 1882, começou a publicar resenhas para o Times Literary Suplement aos 23 anos e publicou seu primeiro romance em 1915. Fundou junto com seu marido, o escritor e ensaísta Leonard Woolf, a Hogarth Press, editora pioneira na publicação de trabalhos sobre psicanálise (incluindo trabalhos de Freud e Lacan) e traduções de importantes romancistas russos como Fiódor Dostoiévski. A editora revelou ainda importantes nomes como T. S. Eliot e Katherine Mansfield. Woolf foi ainda membro do Círculo Bloomsbury, um grupo de artistas e intelectuais que incluía importantes nomes da literatura, da crítica literária e da economia, bem como jornalistas e pintores. O grupo, que começou a se reunir em 1905, acreditava na importância das artes e de fato foi de grande influência para a literatura, a estética, a economia, além de discutirem temas como feminismo, pacifismo e sexualidade.
Extremamente produtiva, Virgínia Woolf não parou de escrever até o fim de seus dias. Dentre seus trabalhos mais conhecidos estão “Mrs. Dalloway”, “As Ondas” e “Ao farol”, obras consideradas complexas e narradas em seu famoso estilo de fluxo de consciência. Nos intervalos entre as obras mais densas, Woolf escrevia outras consideradas por ela menos profundas e mantinha um diário em que falava inclusive, sobre o seu processo de escrita e que ela desejava que fosse publicado após a sua morte.
Virginia Woolf foi uma escritora de grande sensibilidade. Em “Um teto todo seu”, uma palestra que ela escreveu para ministrar a duas faculdades de mulheres dentro da Universidade de Cambridge, ela cria uma personagem para falar sobre a escrita das mulheres. Ela escreve, de modo singular, um ensaio ficcional para apresentar àquelas mulheres algumas questões que ela acreditava serem importantes para pensar e entender como uma mulher escreve e deveria escrever. Ela inicia o ensaio falando sobre as dificuldades financeiras e do tempo de que as mulheres não dispõem para escrever. Ela marca este ponto com uma frase que se tornou célebre:

Dê-lhe um teto todo seu e quinhentas libras por ano, deixe-a abrir sua mente e liberar metade do que agora ocupa-a, e ela escreverá um livro melhor em algum dia desses.


Tratando de como as mulheres são descritas na literatura pelos homens ela prossegue com um breve apanhado de mulheres que escreveram anos antes. Ela percebe nas escritas destas mulheres uma raiva incontida que transborda as margens das histórias narradas e que acaba por manchar a escrita destas mulheres que, caso não estivessem tão enraivecidas, poderiam escrever tão bem como os homens que não tinham outras preocupações além das da própria escrita. Pura ironia, claro. O tom do artigo é carregado dela, uma ironia muito bem trabalhada por Virgínia.
Acerca dos homens que escrevem sobre as mulheres ela encontra outra raiva, uma que traduz o incômodo deles quando as mulheres ocupam lugares que somente a eles pertenciam. Analisando a posição da mulher na sociedade, Woolf faz uma analogia das mulheres como um espelho dos homens:

As mulheres têm servido há séculos como espelhos, com poderes mágicos e deliciosos de refletir a figura do homem com o dobro do tamanho natural


Sendo as mulheres este espelho, a sua crítica às obras masculinas incomoda-os muito mais do que se fossem feitas por outro homem. Como eles se sentirão com o dobro do tamanho que realmente têm, se o seu espelho começar a refletir não sua imagem duas vezes ampliada, mas os aspectos negativos de si e de suas produções?
Sobre as personagens femininas de famosos escritores que a precederam, Woolf afirma que, apesar de serem mulheres que realizaram feitos e tinham vidas interessantes, estas não sobreviveriam à vida real. A realidade as esmagaria com a pobreza, com as famílias e os filhos que deveriam criar, com a submissão. Ela cria outra personagem, a irmã de Shakespeare, uma artista tão talentosa quanto ele. Entretanto não é difícil adivinhar como terminará esta viagem imaginativa. A irmã de Shakespeare acabaria cuidando da casa e dos filhos e sendo o espelho de um marido. Por não suportar a própria sina, se mata e encontra-se então enterrada em uma encruzilhada em frente à Elephant e Castle.
A autora acredita que cada livro é uma continuação dos outros já escritos, assim, cada uma das mulheres escreve os livros iniciados pelas que as precederam. Ela fala sobre como este legado é importante e sobre a necessidade dele ser continuado. Ela pede a suas espectadoras que escrevam. E que escrevam sobre todo e qualquer tema. Que escrevam ficção, que escrevam livros de viagens, que escrevam sobre história, que escrevam críticas, que escrevam pesquisas e sobre ciências, que escrevam.
Há um trecho em que Virginia Woolf fala que poderia dizer a estas mulheres que fossem “magnânimas e justas” mas que não consegue encontrar razão para isso. Pragmaticamente ela as aconselha a serem e pensarem apenas como elas mesmas. Este conselho, por mais simples – e atualmente clichê – que possa soar, é de uma densidade absurda e é certeiro. Como poderemos almejar ou mesmo sonhar ser gigantes enquanto somos meros espelhos? Arrisco-me a dizer que, apenas sendo nós mesmas. Quando formos não mais do que mulheres escrevendo, poderemos então ser o que quisermos. E agora, incorrendo no risco de me tornar clichê digo: o que poderíamos almejar de melhor do que sermos nós mesmas e nos libertarmos para escrever sobre absolutamente tudo o que quisermos?
A conclusão do ensaio é magistral e também cheia de ironia. Nós mulheres demos à luz e criamos os um bilhão e seiscentos e vinte e três milhões de seres humanos que já existiram até então, afirma. E completa: “isso leva tempo”. Entretanto prossegue na ironia falando da ignorância daquelas mulheres à sua frente que nunca fizeram nenhuma descoberta, não abalaram nenhum império, não comandaram nenhuma grande guerra. Que agora não há mais empecilhos para que as mulheres criem e se tornem grandes. Nas últimas frases ela, abandonando a ironia, afirma com imensa sensibilidade que estamos sozinhas e que, quando aceitarmos que estamos sozinhas, a presença da irmã de Shakespeare encarnará em nós – como fazem os espíritos dos grandes poetas, que nunca morrem – se trabalharmos por ela. E este trabalho, por mais obscuro e difícil que seja, ela garante, vale a pena.
Parte do movimento modernista na literatura, Virgínia Woolf também era feminista. Politicamente, o grupo de que fazia parte, o Bloomsbury, tinha tendências progressistas apesar de não serem ativistas. “Um teto todo seu” foi escrito 11 anos após o fim da Primeira Guerra Mundial, momento em que, com os homens lutando na guerra, as mulheres passaram a exercer algumas das profissões que eram tipicamente masculinas. O início do século XX foi marcado, além da guerra, por intensas mudanças políticas, culturais e sociais. O sufrágio feminino – conquistado na Inglaterra em 1918 – é o grande marco das conquistas feministas deste século. A principal reivindicação das feministas após a Revolução Industrial tem passagem marcante neste livro. Entretanto, Virginia Woolf destaca que, no mesmo ano em que o sufrágio feminino foi conquistado, ela ganhou uma herança de 500 libras por ano, fato que para ela foi mais importante do que a possibilidade de votar. Entendo que a afirmação deste posicionamento é bastante significativa por demonstrar o quando a possibilidade de sobreviver de literatura, era difícil para as mulheres.

Por que os homens bebem vinho e as mulheres, água? Por que um sexo é tão próspero e o outro, tão pobre? Que efeito tem a pobreza sobre a ficção? Quais as condições necessárias para a criação de obras de arte?


Escrito há quase noventa anos, a atualidade deste ensaio assombra. A pobreza das mulheres ainda é objeto de constante luta do movimento feminista, as mulheres ainda não têm um teto todo seu sob o qual escrever, ainda dividem o espaço na sala com os maridos e as crianças que, quase sozinhas têm de criar. Ainda precisamos de projetos como o Leia Mulheres para nos conscientizar sobre o quanto ainda é difícil para uma mulher se tornar escritora. É preciso pensar sobre a literatura como um ato político em que nossas escolhas sobre quais livros comprar e até o que ler é impregnada deste significado político.

Título original: A room of One’s Own
Autora: Virginia Woolf
Tradução: Bia Nunes de Souza
Tradução dos poemas: Glauco Mattoso
Editora: Tordesilhas